Eu moro sozinho num planeta, igual ao Pequeno Príncipe, e nunca me
preocupei com a existência de deuses. Não mesmo! As coisas no meu
planeta são tudo preto no branco. Eu me preocupo com a gravidade, com
vulcões, com rosas e com baobás… Nenhum deus nunca interferiu em nenhuma
dessas coisas e, portanto, eu nunca me interessei por eles. Muito menos
pelo seu Deus em particular.
Aí,
um dia, você desce lá nesse meu planeta com a sua Bíblia debaixo do
sovaco, e em vez de perguntar qual o meu nome, ou se eu coleciono
borboletas, quer saber isso:
— Você acredita em Deus, Nosso Senhor e Salvador?
Ao que eu, naturalmente, respondo:
— Hein?
A
partir desse diálogo esclarecedor, você passa a me relatar tudo o que
há na sua Bíblia, no seu livro sagrado, que é a origem do seu
“conhecimento” sobre esse Deus específico. Ao final desse curso
intensivo, onde eu fui informado, através de você, que, por sua vez, foi
informado disso através da sua Bíblia, que foi escrita por pessoas que,
segundo outras pessoas, foram informadas daquilo tudo porque foram
inspiradas pelo ser supremo sobre o qual o livro supostamente fala —
[respire] —, bom, eu fui informado, então, sobre os seis dias da
Criação, sobre as “vontades” de Deus, sobre suas regras para me livrar
do Inferno… Fui informado, também, de que algumas coisas que estão nesse
livro sagrado não devem ser levadas ao pé da letra, outras sim; fui
informado de que algumas coisas não se aplicam mais nos nossos dias, mas
outras ainda sim; e de que algumas coisas soam erradas, são
contraditórias, estúpidas, ridículas, cruéis, perniciosas, degradantes,
etc., mas só porque, especificamente nesses trechos, os homens que
escreveram esses tais livros sagrados não estavam 100% conectados a Deus
e, tendo perdido a conexão, escreveram o que lhes vinha à cabeça, o que
não nos podia fazer esperar que fosse algo que prestasse!
Enfim,
depois disso, e mesmo sem ter me explicado como ou de onde tirou esse
discernimento aí sobre que trechos descartar, você me repete a pergunta:
— Você acredita agora em Deus, Nosso Senhor e Salvador?
Ao
que eu respondo calmamente, depois de ter avaliado como as coisas
sempre estiveram funcionando perfeitamente bem sem nada daquilo: “— Eu não!”.
E, aí, você se estressa, como se estressam todos os crentes ante uma atitude assim, em que a fé simplesmente não aparece para “iluminar” tudo, como faz o sol saindo por detrás de uma nuvem densa…
Você,
então, torna-se mais alterado e começa a esbravejar e a falar alto,
citando inúmeros versículos bíblicos dessa mesma Bíblia que você acabou
de me confessar não ser lá muito confiável. Você se estressa, se revolta
e se enfurece porque eu, de repente, virei um tipo de adversário a quem
derrotar, pois me recuso a não querer abandonar essa minha “condição de
ateu” que — note-se — desembarcou junto com você no meu planeta.
E
como parece que não há nada que me faça ceder e aceitar o que você
aceita, você se vê obrigado a inverter a lógica das coisas e a querer
passar para mim toda a responsabilidade de mostrar a você que o seu Deus
não existe. E quando eu lhe informo que não vou me dar ao trabalho,
porque não há como provar que “uma coisa que não existe” não
existe, e mesmo que houvesse eu não me importaria em fazer isso — e por
que me importaria se, até ontem, eu sequer tinha conhecimento da sua
crença? — , enfim, quando eu lhe informo que não compartilho da sua fé e
que o seu Deus não me interessa, você descarta seu trunfo:
— Você então acredita que Deus não existe, o que o torna, também, um crente, porque também tem fé.
O “argumento” mais recorrente. A UTI que mantém Deus vivo num mundo feito de átomos. O subterfúgio engenhosíssimo do autoengano.
Muito interessante.
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